Brincando com Fogo






Brincando com fogo.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Riscou um fósforo. O aroma das tábuas o fascinava. Curvou-se em reverência. A falta de luz chegara num bom momento. Já há algum tempo observava, pelo olho mágico, a movimentação da mudança. Sua porta quase toda comida por cupins dava um toque contraditório aos riquíssimos móveis que saíam do apartamento vizinho. Os moradores de frente encaixotavam seus pertences para levá-los à nova residência. Inúmeras caixas de papelão o tiravam do sério com frequência.

Os entendidos diziam que Osmar tinha fetiche por celulose. Mas ele negava tais afirmações. Afinal, os livros não lhe causavam tanta atração. Pelos móveis, tinha verdadeira adoração. Outros, talvez com menos conhecimento do assunto, insistiam em dizer que Osmar era piromaníaco. Ele odiava essa palavra. Não tinha instinto incendiário. O que o satisfazia mesmo eram os estalos da madeira retorcendo pelo fogo. Elementos naturalmente inflamáveis não lhe interessavam.

Combustíveis em geral não possuíam a menor graça. Não que fosse um protetor das plantinhas indefesas, mas muito lhe doía a mortandade dos vegetais. Não admitia que tantas árvores fossem derrubadas, florestas devastadas, desmatamentos a torto e a direito, tudo isso para melhor reconfortar a preguiçosa humanidade. Osmar não se sentia um compulsivo. Não gostava de queimar as coisas sem justa causa. Só queimava celulose. Ele não matava as árvores, apenas botava fogo no que já estava morto.

Ateava fogo aos cadáveres das pobres plantas, usadas para servir as donas de casa - verdadeiras assassinas. O cheiro da madeira, principalmente as maciças, inebriava Osmar. Detestava compensado - madeira moída e prensada. Não queimava compensados, apenas os levava para sua casinha de campo e os enterrava no quintal para que apodrecessem. Ele não resistia à fragrância celulósica. Nas artes plásticas, amava a natureza morta não pela pintura na tela, mas pelas madeiras que emolduram a maioria dos quadros.

Quando sua mãe bateu as botas, Osmar tentou de tudo para sepultá-la com a dignidade que merecia. Pesquisou a madeira que seria a mais indicada para o caixão de uma senhora ilustre. Ficou entre o cedro e a cerejeira. Mas, por ironia do destino, sua mãe chegara ao velório num caixão de plástico. O argumento dado, foi que o tal plástico era ecologicamente correto, feito de uma resina fibrosa extraída das cascas de coníferas. Osmar estremeceu. Ficou perplexo. Soltou um berro estridente, saiu desembestado do recinto e reapareceu com uma tocha acesa. Os convidados, em desespero, amontoaram-se para fugirem do órfão insano que ameaçava a todos com chamas.

Num átimo de loucura, Osmar sacudiu a tocha até formar uma circunferência incandescente. Depois, foi queimando as coroas de flores e as pétalas de rosa até que o fogo se espalhasse e atingisse o caixão da mãe. O velório se transformou num crematório antecipado. Foi preciso que os bombeiros fossem chamados para conter as chamas. O caos se instalou. Nada restou da mãe. Osmar ficara por algum tempo internado no hospício. Após a alta, foi morar na antiga residência da mãe e, desde então, só colocava fogo em pequenas tábuas, armários, escrivaninhas e alguns caixotes. Tudo isso em sua casinha de veraneio. Jamais fora visto queimando nada no condomínio de sua mãe.

Mas naquele dia, não resistiu à tanta oferta de madeira no corredor do seu andar. Durante a madrugada, na calada da noite, Osmar saiu de casa com querosene e uma caixinha de fósforos. O breu engolira todos os objetos. Ao primeiro passo, as luzes de emergência acendeu. Mas nem um minuto depois, apagaram-se. Tudo ficara novamente na escuridão. Osmar sentiu que tivera sorte, pois assim passaria despercebido conforme planejara. Despejou várias garrafas de querosene naquela madeira toda dando sopa. Deu um passo para trás e riscou o fósforo.

Curvou-se solenemente e, num peteleco, atirou o fósforo aceso em cima da madeira embebida em material comburente. Um clarão repentino, que sucedeu a uma leve explosão, lambeu o corredor por inteiro. Já com a pele rachando e borbulhando pelo calor excessivo, Osmar dera a última gargalhada, uma gargalhada fantasmagórica que ficara agarrada às paredes do prédio como a fuligem do carbono.

Ao amanhecer, Osmar se levantou assustado. Tivera um pesadelo tenebroso. Amava tacar fogo em celulose, mas há muito tempo não cometia tais insanidades pirotécnicas. Estranhou ter acordado todo ensopado. Os lençóis estavam empapados por um líquido amarelado e de odor insuportável.

Não realizara seus supostos impulsos incendiários, mas também não escapara da punição dos deuses. Estava deitado sobre sua urina fétida. Pelo menos, molhado e humilhado, comprovara o ditado dos seus avós sobre os perigos de brincar com fogo.

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Conto escrito por Alex Azevedo Dias.

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